Substituição Tributária e Direito de Restituição do Excesso

Sumário

É sabido que o contribuinte é a pessoa física ou jurídica que por força dos ditames constitucionais é colocada na situação de destinatária da carga tributária, ou seja responsável pelo pagamento de imposto.

Nessa senda, verifica-se que na própria designação constitucional do tributo já veicula, mesmo que implicitamente, a responsabilidade do sujeito passivo, ou seja, a pessoa que, por imperativo constitucional, terá seu patrimônio diminuído como consequência da tributação.

Para melhor compreensão, vejamos a definição de sujeito passivo apresentada pelo renomado professor Kiyoshi Harada[1]:

O sujeito passivo da obrigação tributária é a pessoa obrigada ao cumprimento da prestação. Relativamente à obrigação principal, é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária (art. 121 do CTN). Em relação à obrigação acessória, é a pessoa compelida às prestações que constituam seu objeto, isto é, prestações positivas ou negativas, pertinentes ao interesse da fiscalização ou da arrecadação de tributos (art. 122 do CTN). Nos termos do parágrafo único do art. 121 do CTN, o sujeito passivo pode revestir duas formas: (a) contribuinte, quando tenha relação direta e pessoal com a situação que constitua o respectivo fato gerador (inciso I); (b) responsável, quando, não sendo contribuinte, sua obrigação decorra de expressa disposição legal (inciso II). Contribuinte é o sujeito passivo natural, isto é, a pessoa que praticou o fato típico ensejadora obrigação tributária. Já o responsável tributário é a terceira pessoa que não praticou o fato jurídico tributado, mas se acha vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação.

No campo do imposto sobre circulação de mercadorias e prestação de serviços (ICMS) o sujeito passivo é aquele que: “a) realiza operações relativas à circulação de mercadorias; b) presta serviços de comunicação, mesmo que se iniciem no exterior, prestações essas que deverão concluir-se ou ter início dentro dos limites territoriais dos Estados ou do Distrito Federal, identificadas as prestações no instante da execução da geração ou da utilização dos serviços; c) prestar serviços de transporte interestadual ou intermunicipal.”[2]

Para melhor compreendermos o termo “venda de mercadorias”, vejamos o escólio do renomado professor Paulo de Barros Carvalho[3]:

“A expressão “venda de mercadorias” tem conteúdo semântico coincidente com o de “operação de circulação de mercadoria”, empregada par a fins de exigência do ICMS. Para sua concretização, é necessária a presença de negócios jurídicos, configurando instrumentos imprescindíveis para que se tenha, como efeito direito, circulação de mercadorias.”

Com efeito, a incidência do ICMS na hipótese destacada ocorre quando o comerciante realiza a venda mercadoria ao consumidor, logo sem a ocorrência da venda não há que se mencionar em relação jurídico-tributária ante a inexistência no mundo fenomênico do fato gerador.

Portanto, antes do evento de circulação de mercadoria pela empresa/contribuinte, não há que se falar em fato gerador das operações de vendas não realizadas.

Nesse ponto tem-se uma mera expectativa de realização do fato gerador, pois a mercadoria está à disposição do consumidor, ainda não houve a circulação de mercadoria e consequentemente a incidência tributária.

Todavia, com o pretexto de racionalização e minoração de sonegação fiscal, mas revelando uma alteração que visou somente à arrecadação fiscal exponencial de impostos, a Emenda Constitucional nº 03/93[4] acrescentou o parágrafo 7º ao artigo 150 da CRFB/88, dispondo sobre a possibilidade de cobrança de imposto em situação “cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente”, é o que o próprio texto estabeleceu como “fato gerador presumido”

Tal situação é conhecida como substituição tributária para frente onde “há uma antecipação do pagamento relativamente à obrigação que surgiria para o contribuinte à frente, caso em que o legislador tem de presumir a base de cálculo provável e, caso não se realize o fato gerador presumido, assegurar imediata e preferencial restituição ao contribuinte da quantia que lhe foi retida pelo substituto, tal como previsto, aliás, no art. 150, § 7º, da CF.[5]

Logo, abriu-se uma autorização para que o ente tributante, por meio de lei competente, implementasse os parâmetros constitucionais da sistemática prevista no novel parágrafo § 7º do artigo 150.

Entretanto, tal sistemática já vem sendo criticada pela doutrina clássica especializada, por todos, citamos o escólio do professor Paulo de Barros Carvalho[6], note-se:

“De modo diverso, na chamada substituição tributária para frente, nutrida pela suposição de que determinados sucesso tributário haverá de realizar-se no futuro, o que justificaria uma exigência presente, as dificuldades jurídicas se multiplicam em várias direções, atropelando importantes valores constitucionais.

Para atenuar os efeitos aleatórios dessa concepção de incidência, acena-se com um expediente compensatório ágil, que possa, a qualquer momento, ser acionado para recompor a integridade econômico-financeira da pessoa atingida, falando-se até em lançamentos escriturais imediatamente lavradas nos livros próprios. Por esse modo se pretende legitimar, perante ordenamento jurídico, a extravagante iniciativa de tributar eventos futuros, sobre os quais nada se pode adiantar.

Ora, se pensarmos que o direito tributário se formou como um corpo de princípios altamente preocupados com minúcias do fenômeno da incidência, precisamente para controlar atividade impositiva e proteger os direitos e garantias dos cidadãos, como admitir um tipo de percussão tributária que se dê à margem de tudo isso, posta a natural imprevisibilidade dos eventos futuros? Se é sabidamente difícil e problemático exercitar o controle sobre os fatos ocorridos, de que maneira lidar com a incerteza do porvir e, ao mesmo tempo manter a segurança das relações jurídicas ?

Procurando atalhar essas questões, o legislador brasileiro fez aprovar a Emenda Constitucional n. 03/ 93 que acrescentou o § 7º ao art. 150 da Carta Magna, prescrevendo: […]

Modificação desse porte, introduzida no altiplano constitucional, teria o condão de encerrar o debate dogmático, imprimindo rumos seguros à disciplina das condutas intersubjetivas no setor tributário? Estimo que não.  A partir da Emenda n. 03/ 93, ficaram bem caracterizados duas orientações normativas contrapostas, ambas girando em torno do secular princípio da irretroatividade das leis. Havendo oposição formal entre dois enunciados do mesmo nível e não podendo aplicá-los concomitantemente, o intérprete deverá optar por um em detrimento do outro. Trata-se, por certo, de decisão de fundo ideológico, mas toda interpretação pressupõe o ato de conhecimento e outro de decisão política, como bem advertira Kelsen. Na verdade, parece-me extremamente difícil abrir mão de valores que as civilizações modernas conquistaram com muita luta e de modo paulatino, no sentido de se acolher diretriz fundada unicamente em critério de comodidade administrativa, para realizar melhores padrões de conforto na arrecadação dos tributos. Interessa a todos, não há dúvida, o bom êxito da gestão tributária, concretizada pelos órgãos da Administração Pública. Ao mesmo tempo, ninguém desconhece a constante preocupação dos funcionários especializados, na busca de providências racionalizadoras, que diminuam o risco e aumentem o rendimento dos procedimentos de cobrança. Todavia, aquilo que choca o sentimento jurídico do cidadão é que isso se faça à custa de valores tão caros e obtidos com tanto sacrifício.

Tais considerações servem para registrar minha convicção no sentido de ser essa espécie de tributação maculada por vícios de inconstitucionalidade, tendo em vista a pretensão de se tributar “fato futuro” atropelando uma série de princípios constitucionais.

 

Deste modo, verifica-se que o supedâneo constitucional que baliza a sistemática da substituição tributária, notadamente em sua sistemática de substituição em relação à operação futura, é atingido por robustos e hígidos argumentos que desafiam sua compatibilidade e validade com o próprio texto constitucional.

Pois, antes da efetiva venda, ou seja, da realização do fato gerador, ocorre à cobrança de imposto como se o fato gerado tivesse acontecido.

Entretanto, em que pese à sistemática ser admitida, não se pode acolher que o fato gerador presumido tenha prevalência sobre a realidade fática, ou seja, a expressão pecuniária presumida não pode prevalecer sobre o valor efetivamente praticado.

Foi em tal contexto que e Supremo Tribunal Federal firmou a tese de que “É DEVIDA A RESTITUIÇÃO DA DIFERENÇA DO IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS – ICMS PAGO A MAIS NO REGIME DE SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA PARA  A FRENTE SE A BASE DE CÁLCULO EFETIVA DA OPERAÇÃO FOR INFERIOR À PRESUMIDA” (RE. 593.849).

Dessa forma, o contribuinte tem o direito de reaver os valores que foram recolhidos a maior da diferença havida entre o fato gerador presumido e o fato gerador efetivamente realizado, é a cláusula de restituição do excesso.

Direito esse já declarado pelo Supremo Tribunal Federal.

Referências:

[1]HARADA, Kiyoshi. Direito financeiro e tributário / Kiyoshi Harada. – 25. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2016. Pág. 660.

[2]CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: linguagem e método, 4ª ed. São Paulo. Noeses, 2011. P. 733.

[3] Op. Cit p. 735.

[4] Emenda Constitucional nº 3, de 17 de Março de 1993, Altera os arts. 40, 42, 102, 103, 155, 156, 160, 167 da Constituição Federal.

[5]PAULSEN, Leandro Curso de direito tributário: completo / Leandro Paulsen. 6. ed. rev. atual. eampl. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014.

[6]CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: linguagem e método, 4ª ed. São Paulo. Noeses, 2011. P. 657-659.

 

por Dr. Carlos R. Nascimento Jr. – Advogado Tributarista e Publicista

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